quarta-feira, 20 de março de 2013

O Outono


Foi-se, finalmente, o Verão, não sem antes fazer
algumas grosserias e malcriações: trovejou, relampejou, choveu, inundou. 
Não queria ir embora. Compreendo. Queria ficar para ver e namorar o Outono, que é
muito mais bonito que ele. Verão, quarentão: recusava-se a aceitar os sinais da
passagem do tempo. Não queria dizer adeus. Gostaria de ficar. A vida é tão boa!
Mas o tempo é implacável. O sol lhe disse que a hora do seu adeus havia
chegado. Foi se inclinando no céu, suas viagens cada vez mais curtas, as noites
mais longas, o crepúsculo chegando mais cedo, as manhãs chegando mais tarde. O
vento, antes, convidava a que se tirasse a camisa. Agora ele causa arrepios e
chama os agasalhos das gavetas onde dormiam. O céu fica mais azul. Deve ter
sido numa tarde de Outono que os Beatles compuseram aquela balada que canta
 “... because the sky is blue it makes me cry...” 
E o verde das plantas fica mais verde. 
No Verão, o excesso de luz ofusca as cores. 
No Outono, a luz fica mais mansa e as cores desabrocham como flores. 
O Verão é inquieto. Tudo nele convida a sair e a agir.
 O Outono é tranqüilo, introspectivo, convida ao recolhimento e à meditação. 
É um convite ao pensamento.

Gosto especialmente das suas tardes.
 O Verão é estação do meio-dia. 
O Outono vive mais ao sol que se põe. 
E como são belos os dois, Outono e tardes. 
Há uma pitada de tristeza misturada no ar. 
“O que é bonito enche os olhos de lágrimas”, diz a Adélia.
 Os dois se parecem porque os dois estão cheios de adeus.
A tarde “... é este sossego do céu/ com suas
nuvens paralelas/ e uma última cor penetrando nas árvores/ até os pássaros.
/ É esta curva dos pombos, rente aos telhados,/ este cantar de galos e rolas, muito
longe;/ e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,/ ainda sem luz...”

Na cidade onde eu vivi, no interior de Minas, ao
crepúsculo se tocava a Ave Maria, e era como se toda a natureza parasse e rezasse.
Eu gostava de ficar olhando para as árvores: havia uma imobilidade absoluta no
ar. Nem um único tremor perturbava a tranquilidade pensativa das folhas. E as
nuvens ao poente se cobriam de verde claro, passando pelos amarelos, laranjas,
e vermelhos, até o roxo, que se preparava para desaparecer na escuridão. Tudo
belo. Tudo triste. E pensávamos pensamentos diferentes daqueles de durante o
dia.

“As nuvens que se ajuntam ao redor do sol que se
põe/ ganham seu colorido triste/ de. olhos que têm atentamente/ observado a
mortalidade dos homens”. 
(Wordsworth)

O crepúsculo e o Outono nos fazem retornar à nossa
verdade. Dizem o que somos. Metáforas de nós mesmos, eles nos fazem lembrar que
somos seres crepusculares, outonais. Também somos belos e tristes... Como o
Verão quarentão, também nós não queremos partir...

“Quando, ao sol que se põe, os rios ficam cor
rosa/ e um leve tremor percorre os campos de trigo,/ parece das coisas surgir
uma súplica de felicidade/ que sobe até o coração perturbado./ Uma súplica de
degustar o encanto de se estar no mundo/ enquanto se é jovem e a noite é bela./
Pois nós vamos,/ como se vai esta onda:/ Ela, para o mar,/ nós, para a
sepultura”. (Paul Bouget).

Quem quer que pare para ouvir as vozes do Outono e
da tarde perceberá que, de dentro da sua beleza, nos falam a nossa vida e a
nossa morte. Nada mórbido. Só podem viver bem aqueles que aprendem a sabedoria
que a morte ensina.

Foi assim que o professor de literatura, no filme A Sociedade dos Poetas Mortos, iniciou o aprendizado dos seus alunos. 
Vocês se lembram? Levou-os até uma fotografia onde se encontravam, imobilizadas sobre o papel, pessoas.
 Agora, todas estavam mortas. Também nós, um dia. A lição da poesia é que é preciso contemplar o crepúsculo no horizonte para se sentir a beleza incomparável do momento. Cada momento é único. Não há tempo para brincadeiras. Carpe diem: colha o dia, como algo que nunca mais se repetirá, como quem colhe um crepúsculo, “antes que se quebre a corrente de prata, e se despedace a taça de ouro...” Beba cada momento até as últimas gotas. É preciso olhar para o Abismo face a face para se cornpreender que o Outono já chegou e
que a tarde já começou. Cada momento é crepuscular. Cada momento é outonal. 
Sua beleza anuncia seu iminente mergulho no horizonte.

Quando o sol está a pino, essas idéias não nos perturbam. 
Tudo parece estar bem. Há muito tempo ainda. As rotinas do trabalho
ocultam a nossa verdade. Mas elas não podem impedir nem que a tarde chegue, com
suas cores de adeus, e nem que o Outono chegue, anunciando a proximidade do
Inverno. E eles nos forçam a ter pensamentos diferentes, pensamentos de
solidão. São mestres silenciosos. Se prestarmos atenção e ouvirmos o que nos dizem,
ficaremos sábios. Porque sabedoria é isto: contemplar o Abismo, sem ser destruídos
por ele. Nas palavras de Rilke, “conter a morte, a morte inteira, docemente,
sem nos tornar amargos.”


Rubem Alves